
Dia 4: Quarta-feira, 20/Set/2007
A ideia de comprar o computador portátil é descartada.
Os meus pés continuam mortos para o mundo.
Deixo a Cristina na conferência e começo a procurar uns sapatos que me permitam andar.
Na 1ª loja que encontro sou atendido por um israelita porreiríssimo (Yoel) que não me arranja uns sapatos fixes, mas em vez disso compro dois pares de Levi's, por 66 dólares no total. Acho que foi um bom negócio. Primeiro ele achou que eu vestia o tamanho 32. Sabendo que estou gordo que nem um texugo, respondi que o 34 era mais plausível. Deu-me um 33 para experimentar, um bocado contrariado, mas numa perspectiva de acharmos o "meio-termo". Descobrimos, para surpresa dele e minha, que afinal o tamanho que me deixava respirar sem ficar roxo era o 36!
Concluo que comparados comigo, até os texugos passam por modelos anorécticas...
Noutra loja ali ao lado encontro uns ténis confortáveis. Saio 59 dólares mais teso mas ainda assim dei por bem empregue o dinheiro quando calcei os sapatos.
Passo por um café a caminho do hotel para comprar um capuccino e decido começar a escrever estas crónicas para a posteridade.
O plano por esta hora (12h) é ao final do dia passearmos no Central Park de bicicleta, irmos ao Harlem assistir a uma sessão de Gospel e depois ver um espectáculo de jazz ainda por lá.
Parece-me ambição a mais para dois bípedes totalmente arruinados dos joelhos para baixo, mas dada a infinita capacidade da Cristina para aturar o meu mau-humor, acredito que tudo é possível.
Quando a Cristina regressa da conferência, já a meio da tarde, apanhamos o Metro para o Central Park, linha 1.
Uma vez lá chegados comemos uma bucha.
Não achámos o estaminé de aluguer de bicicletas e decidimos atravessar o Central Park a pé em direcção ao Norte.
Já no Harlem, procuramos a igreja presbitariana em que era suposto actuar o “Harlem Gospel Choir”. Para complicar, o papel em que tínhamos escrito as instruções para lá chegar ficou esquecido no hotel...
Perguntamos a algumas pessoas.
Perguntamos a algumas pessoas.
Poucas pessoas sabem do que estamos a falar, mas muitos se oferecem para nos dar indicações (uma delas, uma senhora que estava a empurrar um carrinho de bebé, agarra no telemóvel e liga para alguém a perguntar onde ficava o que procurávamos!), enquanto outra vem ter connosco, apresenta-se, pede-nos um cigarro e diz-nos onde ficava o clube de jazz que procurávamos. Muito fixe a hospitalidade que encontrámos no Harlem, contra tudo o que eu poderia prever.
Achamos, depois de muito deambular, a "St. Mary's Presbytarian Church" e entramos.
Há um coro de Gospel a cantar. Um punhado de gente dispersa nos bancos a assistir.
Sentamo-nos num dos bancos mais atrás a ver e, ainda os nossos lugares não estavam quentes, já uma senhora, nos seus 60s, com um ar cadavérico nos vem oferecer um CD e uns papéis.
Pergunto-lhe se estamos no sítio certo, depois de explicar o que procurávamos e ela, sem grande certeza de que lá estivéssemos de facto, conclui com «I'm not sure this is what you were looking for, but if you stay a while, you might not regret having come here...».
Visto que não há como “desmontar” este tipo de raciocínio, ficamos a ver o espectáculo.
E porque de facto «Deus escreve direito por linhas tortas», acho nem ela própria sabia o quão certa estava...
Visto que não há como “desmontar” este tipo de raciocínio, ficamos a ver o espectáculo.
E porque de facto «Deus escreve direito por linhas tortas», acho nem ela própria sabia o quão certa estava...
Esta é uma boa altura para fazer aqui um parêntesis: eu sou o ateu convicto, que apenas se esquece de o ser quando está num avião e pede a essa força misteriosa a que se convencionou chamar Deus, que tome conta daqueles a quem quero bem no caso de alguma coisa correr mal, antes de o avião sair da pista. E de repente, dou por mim numa igreja(!!!), a ouvir uma data de malta escurinha e rechonchuda a cantar músicas religiosas.
Com o estado de espírito mais catatónico que alguém possa imaginar...
E eis senão quando, após os cânticos de Gospel, entram em cena uma série de pessoas já entradotas, cada uma com um aspecto mais peculiar (to say the least) que a outra, para representar uma peça de teatro amador, acompanhados ao piano e ao violino por um casal de caramelos com um ar completamente alienado pela religião (não há palavras para descrever o ar mumificado daquele par de jarras, pareciam saídos dum filme do Lars von Trier)...
Ele tão tímido que só lhe faltou pedir desculpa por existir. Ela com uma voz esganiçada como eu nunca pensei ser possível.
Tem início a peça.
Uma alegoria sobre meia-dúzia de desconhecidos uns dos outros, que de repente se vêem rodeados de água e concluem que para construir um barco e safar-se da inundação, têm de trabalhar em conjunto. Há toda uma moral com final feliz implícita, estilo conto para crianças, como convém.
15 minutos depois acabou a peça.
E eu estava para lá de overwhelmed, capaz de os ir abraçar a todos e agradecer o espectáculo. E não resisti a ir felicitar alguns deles.
O mais irónico é que este espectáculo teve lugar na "St. Mary's Presbytarian Church", que fica na esquina da Broadway com a rua 114 se não me falha a memória. Garanto que este espectáculo, perfeitamente amador, na Broadway, suplantou em muito qualquer mega-produção, musical ou não, que alguma vez tenha sido exibida nas salas de espectáculo em que se pensa, quando se fala da Broadway.
E as (boas) surpresas não acabaram aí. Terminado o espectáculo – que ainda teve uma componente lúdica inesperada: um soprano a recitar uma série de passagens escritas por malta que não tinha nada melhor para fazer que escrever sobre a união entre os homens, a harmonia com Deus e essas patacoadas todas, assim como quem canta o que vem escrito na lista telefónica – pergunto a um negro, dos seus 50s, com poucos dentes, muito cabelo e ar de pedinte, que estava à porta da igreja, se sabia onde ficava o clube de jazz que procurávamos ("EZ").
Um tipo que tinha acabado de cantar no coro de Gospel que vimos uns minutos antes.
Ele não sabia onde ficava esse clube, mas sabia onde ficava outro, o "Smoke" (onde ironicamente não se podia fumar...).
E quando começou a falar de jazz os olhos dele ficaram com o dobro do tamanho e parecia um puto a quem tinham dado uma "Playstation".
3 minutos, algumas alusões às origens da música e um cigarro depois estávamos a convidá-lo para vir connosco ao tal "Smoke".
E fomos.
E tivemos uma noite bestial, de jazz (não, ainda não foi desta que me rendi ao jazz – há algo naquela parafernália de notas tocadas aparentemente ao acaso que me despista) e de conversa com um tipo que vive na rua, a recolher latas para reciclagem, que vibra com jazz, conversa de política e História afro-americana como poucas pessoas, pergunta como é o plano de Saúde em Londres para depois o comparar com o que a Hillary Clinton está a tentar instituir por cá e que tem uma paz de espírito como nesta terra não existe.
O que surpreende ainda mais, por vir de quem vem.
Não cumprimos o plano inicial. Mas a noite correu muito melhor do que esperávamos.
Ele agradeceu-nos um sem-número de vezes por o termos levado àquele clube de jazz. Mas na realidade fomos nós que lhe ficámos a dever um serão fantástico.
Não cumprimos o plano inicial. Mas a noite correu muito melhor do que esperávamos.
Ele agradeceu-nos um sem-número de vezes por o termos levado àquele clube de jazz. Mas na realidade fomos nós que lhe ficámos a dever um serão fantástico.
Senhoras e senhores: este é Charles Kelly. Antigo professor. Auto-intitulado «o preto irlandês de St. Mary's Church». O avô, da parte da mãe, supostamente era português. É doido por jazz. Está de muito bem com a vida e invejavelmente em paz com o mundo. E tornou a nossa passagem por Nova Iorque muito melhor.
Aqui fica o nosso agradecimento e a "homenagem" possível, bué devida e muito sentida.
Aqui fica o nosso agradecimento e a "homenagem" possível, bué devida e muito sentida.
A Cristina já dorme mas eu tinha de escrever isto antes de me juntar a ela.
Espera-nos um dia comprido e que começará cedo amanhã. Se tudo correr bem, as próximas linhas sairão do Canadá [assim haja internet disponível :)].
Espera-nos um dia comprido e que começará cedo amanhã. Se tudo correr bem, as próximas linhas sairão do Canadá [assim haja internet disponível :)].
1 comentário:
É um prazer viajar convosco.
Abraços à menina e beijos ao menino.
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